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Uma reflexão sobre a escola que está por vir

16 de abril de 2021

Laura Monte Serrat Barbosa

Qual Escola Ocupará o Lugar Daquela que Estava Aqui? Esse foi o tema provocador que a ABPp Seção Piauí lançou para a abertura das atividades de 2021, após ter lido um artigo que escrevi, no Blog da Síntese – Centro de Estudos da Aprendizagem, e que tinha como título: Cadê a Escola que Estava Aqui?
Essa provocação fez-me pensar muito e levou-me a tramar tudo que já estudei, o que já vivenciei, o que já observei, o que vivo hoje, como psicopedagoga e educadora, os diálogos com pais, profissionais da escola, alunos, os estudos que venho fazendo sobre a Complexidade e a Transdisciplinaridade, as discussões profissionais da equipe da Síntese, da qual sou parte integrante, a fim de tentar tecer uma reflexão que vá além da que está posta, a respeito de como a escola ensinará durante a pandemia que acometeu o mundo em 2020, e também após esse período que, no início de 2021, ainda não se sabe quando será.
A discussão atual parece ficar mais relacionada ao ensino remoto, ao presencial ou ainda ao ensino híbrido, à tecnologia, aos recursos que estão sendo criados para que as escolas possibilitem aprendizagens aos seus alunos.
Minha reflexão, no entanto, vai por outro caminho. Independente se a escola vai adotar uma forma de ensino virtual, presencial ou híbrido após o afastamento provocado pela pandemia, penso que se deveria aproveitar a parada, que impactou a vida de todos e também da escola, para realmente transformar os discursos em ação.
Ao pensar sobre a pergunta da ABPp Seção Piauí e sobre as Cirandas Virtuais de Educadores e de Pais, organizadas pela Síntese, nas quais se discutiu o tema Cadê a Escola que Estava Aqui?, levantei pontos a serem considerados por esta escola que ocupará o espaço daquela que estava aqui.
Dentre muitas possibilidades, destaquei sete grandes considerações a serem feitas por todos nós que pensamos e fazemos a escola no país.

1) Somos natureza
A escola que desejamos está sendo convidada a considerar que somos natureza, e não donos dela. Somos seres biológicos, descendentes de uma linhagem que teve um percurso muito longo até conseguir falar, simbolizar e expressar o que pensa. No entanto, mesmo sem falar, já tínhamos o que Maturana (2004) chamou de “linguajear”, ou seja, uma forma de conviver que deixou de ser ocasional e passou a coordenar comportamentos, a ponto de eles tornarem-se consensuais e serem conservados nas gerações seguintes. O “linguajear” é uma forma de coordenar ações e emoções, chamada também de conversar, uma forma de operar na convivência, um conversar sem linguagem oral. “[…] o humano surgiu quando nossos ancestrais começaram a viver no conversar como uma maneira cotidiana de vida […] (MATURANA, 2004, p. 31).
Como simples integrantes da natureza, precisamos aprender seus segredos, conviver com ela, conhecê-la, para poder conservá-la, ao mesmo tempo que nos conservamos como espécie, como seres viventes do nosso planeta. Trocmé-Fabre (2010) diz que aprender não é somente uma ação vivida nas escolas e meios educativos; antes de tudo, é uma ação que pertence à vida, a todos os seres viventes do planeta. A esse processo, ele chama de “aprendência”.

É quase certo que o Homo não teria sido “erectus”, nem “faber”, nem “loquens”, ainda menos “sapiens sapiens”, nem como ele é chamado atualmente “communicans”, se ele não tivesse sido, antes de tudo, “cognoscens”, ou seja, habitado pelo impulso da aprendência, pelo desejo de conhecer e de reconhecer que caracteriza todo organismo vivente. (TROCMÉ-FABRE, 2010, p. 27).

Para Paín (1985), no processo da aprendizagem, coincidem um organismo, um nível de desenvolvimento cognitivo, um corpo, um sujeito relacionado e um momento histórico. Para estudá-lo e compreendê-lo, faz-se necessário articular distintas estruturas teóricas.
Uma das possibilidades de aprendizagem acontece na escola, embora não aconteça somente lá; nesta escola que pensei, pelo fato de considerar que somos natureza, será possível também considerar as questões da ancestralidade, da ecologia, da coexistência e de uma vida sustentável.
Como possibilitar que os aprendizes aprendam a natureza como a casa de todos os seres viventes e pensem em nós, humanos, como integrantes dessa morada?
Que pensamento regerá a organização curricular, de forma que ela possa ser vivida, pensada e utilizada como instrumento de preservação e sustentabilidade, ao mesmo tempo em que seja promotora de inovação?
O que já sabemos sobre isso? O que já foi feito a esse respeito?
Talvez possamos começar explorando e conhecendo melhor nosso contexto natural.

2) Somos sociais e construtores de cultura
Essa consideração importante está ligada ao fato de sermos históricos e termos constituído uma linguagem logo após o desenvolvimento da laringe. Isso permitiu que construíssemos a linguagem oral, os símbolos, as sequências sintáticas para expressá-los, e as manifestações da cultura em suas mais diversas formas, como a arte, os ritos, os contos, a palavra, assim projetando o imaginário de forma mais abstrata que os ancestrais, os quais o projetavam fazendo ferramentas, por exemplo.
Nossa história permite-nos conhecer todos os saberes que foram sendo registrados até os dias de hoje. Podemos constatar que esses conhecimentos foram sendo divulgados, aprendidos e, nos distintos povos e distintos momentos históricos, tiveram sua importância; no entanto, foram sendo ampliados, aprofundados, transformados, multiplicados e deram origem a novos saberes, a partir de novas configurações dos contextos.
Assim, fomos constatando a dinâmica da origem e do percurso de vida dos seres humanos. Aprendemos com o passado, mas não podemos esquecer que, como seres históricos, precisamos continuar esse processo dinâmico. Não tem sentido aprender a mesma coisa e do mesmo jeito que nossos antepassados. Precisamos, como escola, respeitar e promover a curiosidade, pois é ela que move a investigação, a pesquisa e a construção de conhecimentos. Precisamos criar problemas e resolvê-los para o mundo de hoje, sem descartar o aprendido.
Será que existe outra forma de aprender que não seja copiando da lousa? Será que existe outra forma de aprender que não seja apenas memorizando? Será possível ensinar a pensar sem perguntas, apenas com certezas que foram vividas em outra época e outro lugar?

3) Somos seres de relação: aprendemos em grupo, no grupo e para o grupo
Aprender numa situação na qual estejam várias pessoas sem negligenciar as singularidades de cada uma, e também cuidar das singularidades sem desvalorizar o todo, é um desafio; porém, é possível vencê-lo se pensarmos o individual e o social como uma unidade, na qual é possível articular as partes sem misturá-las e sem dicotomizá-las quando, por exemplo, propormos tarefas comuns a ser realizadas no coletivo.
Entendendo coletivo como aquilo que pode ser construído para o bem comum, a ideia não resulta em algo palpável e visível, mas sim impessoal. Ele surge como um elemento que traz um fluxo entre ser indivíduo e ser social, como articulador da transformação do que existe, visando às novas situações. Para Guattari (1992, p. 20), o coletivo é entendido como “uma multiplicidade que se desenvolve para além do indivíduo, junto ao socius, assim como aquém da pessoa, junto a intensidades pré-verbais, derivando de uma lógica dos afetos, mais do que de uma lógica de conjuntos […]”. Sendo assim, coletivo não é uma coleção de pessoas, e sim o co-engendramento dos indivíduos e da sociedade. Nesse sentido, instituir a possibilidade de aprender em grupo, dentro da escola, pode levar ao desenvolvimento de uma capacidade de valorização e de vivência do coletivo.
Para criar a vivência do coletivo, é preciso pensar junto, planejar junto e fazer junto o que foi pensado e planejado; certamente, isso contará com as contribuições individuais, as quais vão se transformando no interior do grupo até se tornarem um objetivo e uma motivação coletiva.
Assim, além dos estudos sobre grupo, a promoção da vivência grupal para o corpo docente, para a gestão, para a comunidade familiar e para os aprendizes faz-se urgente. Não desenvolvemos a alteridade, a empatia e a cooperação de maneira mágica; precisamos viver, experienciar, registrar as experiências e ir pensando que, além da autonomia social, intelectual e moral, precisamos preparar a humanidade para o desenvolvimento da ontonomia. A construção desse sentimento de coletividade possibilita a preocupação e o cuidado com aquilo que é de todos os seres viventes. É a partir da vivência do conceito filosófico de alteridade que aprendemos a nos colocar no lugar do outro, a compreender o outro que compartilha o mesmo espaço e o mesmo tempo, mas também a viver para fazer um mundo que vá se tornando sempre melhor para si, para o grupo, para o planeta e, inclusive, para aqueles que não compartilharão o mesmo espaço, nem o mesmo momento histórico, ou seja, aqueles que ainda estão por vir.
Segundo Barros (2005), a ontonomia considera o si mesmo, os outros e as coisas para a formação de um ser humano capaz de constatar o que é essencial para a sua natureza, para a realidade em que vive e para as necessidades dos outros. Assim, ele vai se comprometer e responsabilizar por suas ações; respeitar os outros e a natureza; desenvolver uma conduta ética que se revela quando o sujeito se importa com o que faz, com a maneira de fazer e com o impacto que sua ação pode produzir no contexto natural, cultural e relacional.
Iniciar a aprendizagem em grupos é uma possibilidade que tem sido pouco vivida nas escolas. Normalmente, as tarefas são ofertadas para ser resolvidas individualmente; a confiança de que a partilha e o diálogo contribuem para a aprendizagem nem sempre é uma realidade. Não raramente, as tarefas são comparadas de tal forma que, em vez da cooperação, incentivamos a competição para alguns e a desistência para outros.
Como atingir um objetivo tão amplo em, aproximadamente, vinte anos de formação de um sujeito aprendiz, na escola?
Em que momento podemos iniciar a preocupação de nossos aprendizes com o outro, com o ambiente e consigo mesmo?
Como promover ações em que todos trabalharão em função de um objetivo?
A cooperação e a competição são aprendidas na convivência?
Em nossas atividades de aprendizagem escolar, temos dado mais ênfase à competição do que à cooperação?
Será possível desenvolver a ontonomia apenas em situações de aprendizagem e ensino frontal?

4) Vivemos em espaços e entre espaços
Ao pensar no processo de aprender, consideramos que os aprendizes estabelecem interações: com o espaço externo, que é o espaço que pode ser percebido e considerado como um espaço objetivo, no qual é possível se estabelecer uma estrutura vincular real (VISCA, 2010) entre os protagonistas da escola e o objeto de estudo; com o espaço interno, que é dentro de si, onde se encontram as fantasias, os sonhos e as emoções que, na relação com o outro, coloca-se em jogo o que Visca (2010) chamou de estrutura vincular virtual; e, mais recentemente na história da humanidade, com um espaço que é espaço que não se opõe ao espaço real, ao mesmo tempo em que não possui um território objetivo e caracteriza-se por ser um espaço de não presença, ou seja, o espaço virtual propiciado pela tecnologia.
Nesse momento, além de pensar nos espaços com os quais o aprendiz interage para aprender, gostaria de pensar nos espaços que a escola pode oferecer e utilizar para atender às necessidades dos processos de aprender que acontecerão em seu interior e fora dele, nos espaços intra e extraescolares, como também no espaço virtual.
A escola de hoje está convidada a considerar que a utilização de apenas o seu espaço interno, intraescolar, para oferecer experiências de aprendizagem, não é suficiente. No entanto, na composição de seu espaço interno, precisa pensar em espaços que acolham a objetividade e a subjetividade de seus aprendizes, que promovam o desenvolvimento da memória e da imaginação, que possibilitem o autoconhecimento e o conhecimento dos outros e do mundo e que dialoguem com o espaço externo da escola e da comunidade, a fim de que o conhecimento a ser aprendido possa ser significativo e útil para os avanços necessários, assim como possa fazer sentido para aqueles que aprendem.
Segundo Serafini et al (2015), fazer da escola um lugar de aprendizagem a partir do espaço é desafiador. “O desafio é transformar cada escola/espaço/ambiente em um lugar de relações, um lugar em que se aprende, ensina, educa, educa-se, que valoriza os bens naturais e culturais disponíveis.” (p. 126).
Em outras palavras, uma escola que permita o desenvolvimento das estruturas vinculares real e virtual entre escola, aprendiz e conhecimento.
Assim, podemos pensar numa escola em que a preocupação ou não com o espaço, com o cuidado, com a presença de estética, com a escolha dos objetos e com o espaço para a convivência pode educar e emanar conhecimentos e saberes para a formação de seus aprendizes, sejam eles positivos ou não.
O que se aprende em um espaço descuidado? E num espaço cuidado?
O que se aprende em um espaço em que seus elementos estão disponibilizados de qualquer forma? E num espaço em que existe a preocupação em compor com a arte, de forma a valorizá-la?
O que o espaço dessa escola pretende emanar?
Da mesma forma, existem tantas outras perguntas que podemos fazer, a fim de refletir sobre esse caminho.
Por outro lado, a escola precisa também conhecer o espaço geográfico onde se encontra, a fim de poder utilizá-lo. A realidade, por mais bela ou cruel que seja, pode convidar para ações possíveis, em parcerias. Talvez seja possível pensar num currículo no qual o conhecimento seja instrumento de transformação do espaço e das pessoas.
Além disso, com o advento da cibernética, passamos a pensar num espaço que não é espaço objetivo e que passou a ser acessado pela escola em geral, mais frequentemente durante a Pandemia de Covid-19, em 2020.
O espaço virtual, no entanto, precisa ser estudado pela escola como um instrumento que veicula a informação e o conhecimento já construído, que possibilita a pesquisa, que oferece formas diferenciadas de comunicação, que aproxima distâncias e permite conhecer, de maneira dinâmica, outras realidades e outras culturas. Assim, ele precisa também ser cuidado, com a preocupação de que seja um espaço de descoberta e aprendizagens, o qual possibilite a comunicação eficaz, o debate, a exposição de ideias, as discussões, a pesquisa e a investigação. Também é um espaço/ambiente educativo, sendo importante destacar o cuidado com o tempo de uso, com a saúde e com a artificialidade ou a autenticidade das relações.
A escola atual está convidada a pensar na articulação desses espaços para que seus aprendizes possam aprender a partir das interações possíveis com eles e entre eles. Nas reflexões com suas equipes, é importante introduzir o tema do espaço como ambiente educativo, por meio do qual se pode aumentar ou não o grau de autenticidade das aprendizagens.
O que o espaço tem a ver com a promoção de relações saudáveis na escola?
É possível, por meio do cuidado com o espaço/ambiente escolar, instigar os aprendizes para estudos necessários?
É importante a presença da arte no espaço escolar? Por quê? O que mais é possível?
Como se encontra o espaço da escola na qual trabalhamos?
Quais transformações são necessárias e possíveis?
O que estamos possibilitando, de aprendizagens, por meio desse espaço?
Temos aproveitado os espaços extraescolares para veicular a aprendizagem? Como?

5) Aprendizagem como processo de aprendência
Essa contribuição, sistematizada por Trocmé-Fabre (2004; 2010), tem como fundamento a transdisciplinaridade que considera a aprendizagem como uma condição de todos os seres viventes; o ser humano e todos os outros – animais, plantas, insetos, bactérias, vírus e células – aprendem.
Segundo Maturana (2000), os viventes aprendem porque estão em coexistência com os outros e com o ambiente. O processo de aprender promove transformações que não são atos apenas do aprendente, mas também do meio no qual ele se encontra. As transformações acontecem naquele que aprende e em seu contexto, o que caracteriza a aprendizagem como resultante de um processo histórico. Por isso, não se fala em aprendizagem como aquisição de novos conhecimentos, mas sim como um processo que é próprio dos viventes.

[A história é, portanto,] a transformação ao redor de algo que é conservado. Se nada é conservado, não há história. […] O que conservamos abre espaço para o que podemos mudar. […] E isso ocorre no intervalo de tempo em que os sistemas vivos e os meios mudam de modo coerente, conjuntamente. (MATURANA, 2000, p. 88).

Ao voltar sua preocupação para o aprender do ser humano, Trocmé-Fabre (2010) aborda que aprender não é fruto da ação de dar e receber um saber, o qual é considerado como uma entidade externa a nós. “Aprender é um processo de criação de laços em nossa vida mental, afetiva, sensoriomotora, neurológica. Esses laços são, fundamentalmente, complexos, transitórios, adaptáveis, dinâmicos e eurísticos.” (TROCMÉ-FABRE, 2010, p. 28).
Se todo sistema vivo é entendido pela visão sistêmica como capaz de aprender, por que que algumas pessoas não aprendem? Certamente, afirma a mesma autora, por se encontrar paralisadas, decepcionadas, com medo de fracassar, de não ser compreendidas, pois também é possível aprender na interação com o contexto no qual se é incapaz de aprender. Assim, não será mais possível se utilizar de mecanismos de autorregulação, de adaptação ativa e de evolução.
Essa reação diz respeito ao que Visca (2015) chama de obstáculo à aprendizagem. A aprendizagem é um processo evolutivo que resulta da interação das pessoas que aprendem com seu meio, pela qual vai construindo quatro grandes sistemas: o sistema afetivo, o sistema motor, o sistema simbólico e o sistema operatório. Sua evolução dá-se em espiral; portanto, acontece em um processo histórico, no qual o sujeito vai aprendendo conjuntamente com os contextos nos quais vive e convive: com a mãe ou com a pessoa que desempenha esse papel, com a família da qual faz parte, com a comunidade com a qual interage e com a instituição educativa onde procede suas aprendizagens formais. Também aprende com o tempo histórico em que vive, relacionado à sua história e à dos outros com quem convive, mas também com a história pregressa de seus antepassados.
Trocmé-Fabre (2010) aborda que a capacidade humana de aprender manifesta-se no nível biológico, no nível social e no nível que chamou de “significância” e que pode acontecer de forma simultânea no plano individual e grupal; também se manifesta de forma implícita e explícita, resultando de um espaço/tempo individual e da humanidade.
Nesse percurso, saber e não saber são atos possíveis, que têm a ver com o tempo, com o momento do aprendiz, e não permite mais a avaliação restritiva: um sabe e outro não sabe, e sim traz a possibilidade de constatar que entre saber e não saber existe a possibilidade do “ainda não”.
Saber e ainda não saber não obstaculiza, mas abre possibilidades de vir a saber. A “aprendência” abre espaço para a superação das dicotomias estabelecidas na escola do “ou”: certo ou errado; êxito ou fracasso; campeão ou perdedor… O processo abre espaço para o que está por vir, e não determina que os aprendizes ocupem espaços de bom ou mau aluno, de primeiro ou último, de quem compreende ou não compreende, de quem aprende para ser intelectual ou para desenvolver um trabalho de outra ordem…
Não se passa da condição de não compreensão para a de compreensão por receber ensinamentos de outros. Quando entramos em contato com o novo a ser aprendido, fazemos com que ele passe por dentro de nós, por aquilo que já somos, que já sabemos, com o que já nos vinculamos afetivamente e, então, compreendemos a partir dos enlaces que podemos fazer. O aprendiz tece o que sabe com o que está conhecendo e amplia seus esquemas de aprender com o tecido que passa a fazer parte dos seus saberes; então, compreende e leva consigo. Por isso, não existe a pessoa que não compreendeu, e sim a pessoa que compreendeu de outra forma. No entanto, nem sempre o faz com a forma e o conteúdo que o outro espera. Esse outro, aquele que está na escola, pode considerá-lo, numa relação do “ou”, como um não sabedor.
Assim, independente se a escola for acontecer de forma presencial, virtual ou ambas, está convidada a refletir sobre dois pontos importantes, destacados a partir do conceito de “aprendência”: deverá ser uma escola voltada para o compreender e o escrever.
O compreender, como possibilidade de levar consigo o que passou a lhe pertencer; autoavaliar-se e constatar o quanto foi possível se aproximar ou afastar do que foi dito, lido ou explicado e, a partir da própria constatação, buscar em si mesmo outros elementos para ir além. Assim, o papel da escola aqui não será o de quem dá aula, mas o de quem pergunta, de quem desacomoda, de quem provoca, de quem traz possíveis articulações, de quem co-pensa, de quem media, de quem coordena.
O escrever diz respeito à possibilidade de registrar o que passou a lhe pertencer, como um ato de autoria, pois o autor só poderá escrever com autoridade sobre aquilo que leva consigo. Assim, Trocmé-Fabre (2010) utiliza-se de uma metáfora e afirma que a escola precisa promover a escrita de três livros: o livro do meio ambiente, o livro dos outros e o livro de si mesmo.
De que forma será possível pensar e fazer essa escola?
Quais mudanças precisam ocorrer no olhar para a aprendizagem e para os aprendizes; que forma de ação necessita ser implantada dentro da escola para que seja possível escrever esses três livros?
O que fazemos com os conhecimentos já construídos?
Quais elementos novos trazidos pela informática e pela tecnologia não são privilegiados na escola como aprendizagens necessárias e possíveis?

6) Aprender como transformação
Busquei uma imagem que pudesse provocar o como fazer, como transformar o discurso em ação ou mesmo como transformar as informações em conhecimentos e os conhecimentos em saberes próprios do aprendiz.
Pensei numa escola usina, a qual consiga promover essa transformação não somente a partir dos conhecimentos já produzidos e que precisam se dar a conhecer, mas a partir de questionamentos e de perguntas, como elementos principais do mecanismo de transformação. A pergunta pode nos retirar do lugar cômodo em que a história nos coloca; a pergunta faz com que olhemos para nós mesmos, para o outro, para o que já se sabe, para o caminho ainda não percorrido. Por isso, metodologias mais mobilizadoras falam de problematização e de situação problema. Freire (2001) traz para a prática educativa a problematização, ou seja, as perguntas problematizadoras, com a clara intenção de que o aprendiz seja autor, pense, argumente, faça reflexões, conheça outros pontos de vista, desconstrua algumas certezas, propondo uma compreensão ético-crítico-política da educação.
Outro educador que aborda o como fazer é Célestin Freinet; no pós-guerra, preocupou-se em criar um espaço de trabalho e cooperação na escola, visando à formação e à orientação de uma dada prática escolar. Instituiu várias ações, até hoje utilizadas em muitas escolas: a imprensa, as aulas passeio, os cantos pedagógicos, o livro da vida e outras, com a ideia de mudar a escola por dentro, pensando no papel participativo do aprendiz.
Fazendo um passeio pela história, vamos encontrar outros estudiosos, os quais desenvolveram propostas teóricas e/ou práticas que foram incorporadas pela escola em distintos momentos, em diferentes países. Muitos deles fizeram relatos importantes, com ênfase em aspectos do momento em que viveram e que podem contribuir para a escola de hoje. Citaremos, pois, alguns que fazem parte dos discursos e das práticas pedagógicos das escolas brasileiras: Maria Montessori, Jean Piaget, Levy Vigotsky, John Dewey, Antón Semiónovich Makarenko, Loris Malaguzzi, Emilia Ferreiro, André Lapierre, Rudolf Steiner, José Pacheco, Anísio Teixeira, Armanda Álvaro Alberto, Mariana Coelho.
Hoje, temos uma escola que está convidada a superar o “ou” e a fazer acontecer o discurso de uma escola para a diversidade, que precisa lidar com a complexidade das relações dos saberes e da sua aplicabilidade, das relações humanas, pessoais e profissionais; ou seja, uma escola que se encontra diante da necessidade de mudanças profundas e que precisa, no pós-pandemia como em outros momentos históricos – pós-revolução, pós-guerra –, inovar e escolher caminhos.
É preciso mudar de paradigma; em vez da Escola do “ou”, que seja possível pensar numa estrutura da escola do “e”.
Algumas contradições adotadas pela escola não cabem mais. Errar e acertar são ações esperadas em um processo de aprender; a auto-organização acontecerá de dentro para fora; o sucesso e o fracasso são valorizados na pesquisa para dar continuidade à construção de um conhecimento, de um objeto, de um recurso; a competição e a cooperação podem existir no mesmo contexto; o individual e o grupal, o objetivo e o subjetivo, o concreto e o abstrato, a formação intelectual e a formação para o trabalho de outra ordem não se opõem, e sim podem coexistir e ser complementares.
Então, como seria uma escola do “e”?
Será possível mudarmos a forma de olhar para as contradições existentes na vida?
E na Escola? Será possível desconstruir conceitos, tais como: seriação escolar, notas para níveis de compreensão, tipos de patologias e seus referidos laudos, bons e maus comportamentos?
Será possível pessoas de diferentes idades desenvolverem um projeto de aprender, juntas?

7) A escola do “e”
Como aborda Freire,

Sonhar não é apenas um ato político necessário, mas também uma conotação da forma histórico-social de estar sendo de mulheres e homens. Faz parte da natureza humana que, dentro da história, acha-se em permanente processo de tornar-se […]. Não há mudança sem sonho, como não há sonho sem esperança […].
A compreensão da história como possibilidade, e não determinismo […] seria ininteligível sem o sonho, assim como a concepção determinista sente-se incompatível com ele e, por isso, o nega. (FREIRE citado por FREIRE, 2001, p. 13).

Então, vamos nos aventurar num sonho para que possamos torná-lo possível. Certamente, o Ministério de Educação, muitas Secretarias de Educação de Estados e Municípios do Brasil e muitos Sistemas de Ensino já estão pensando nas possibilidades de mudança, de retorno às aulas. No entanto, penso que sempre é possível provocar, em um mecanismo dinâmico como o da educação, novos pontos de reflexão, novas possibilidades de pensar, fazer e ousar.
Trocmé-Fabre (2010, p. 95), a respeito da escola do Século XX, aborda:

Ignoramos que nosso cérebro é plural e que ele faz a gestão de várias temporalidades: a da sobrevivência, a da relação afetiva, a da busca do sentido. Ignoramos, principalmente, que nossa vida cognitiva constrói-se graças aos intervalos e às transições e que o vivente decide na e pelas transições.

A lógica clássica precisa ser superada, precisamos ir além do paradigma da descentração e, segundo Morin (1996), precisamos realmente fazer acontecer o paradigma de conjunção do conhecimento.
Nos estudos da transdisciplinaridade (NICOLESCU, 2000), é preciso considerar que os contraditórios, trazidos pela lógica clássica como incompatíveis, limitam-se a uma determinada área de compreensão do mundo; no entanto, ela torna-se nociva em casos complexos, como no campo social e político. Nesses casos, torna-se uma lógica de exclusão. Por exemplo: bom ou mau aluno, para homens ou para mulheres, para bem comportados ou para mal comportados, difícil ou fácil; e também outros pares de contradição ligados ao saber: sabe ou não sabe, compreendeu ou não compreendeu. Então, no campo da ação humana essa lógica contribui para a exclusão.
Vamos pensar na lógica proposta pela transdisciplinaridade, como uma lógica não contraditória, possível em situações complexas e de processo, como é a aprendizagem. Ela lida sempre com o que está por vir e, nesse sentido, é uma lógica do não contraditório: não sabe até aqui, mas pode vir a saber; não se comportou nessa situação, mas pode aprender e conhecer melhor as características desse contexto; compreendeu a partir das suas referências; e assim por diante.
Sonhar com uma escola que promove o aprender a pensar e a trabalhar; que prepara para falar, argumentar e escrever; que possibilita assistir e discutir, escutar e argumentar, aprender nos livros, no cinema, no parque, no museu, na panificadora, numa aula expositiva, na cozinha da escola… Aprender com a fala e com o silêncio, individualmente e em grupo, com o adulto e com a criança, com os conhecimentos já construídos e com os que são emergentes; numa escola que aprenda com o passado; que coloque o conhecimento a serviço das necessidades do presente; que projete o futuro…
Nesse sentido, o convite para reflexão é: Vamos conhecer as raízes e alçar voo, não para fugir, mas sim para criar novos problemas e novas soluções a serviço da vida, da nossa casa, dos saberes existentes e daqueles que estão por vir.
É possível? Quem poderá nos impedir?
Quais são as nossas necessidades agora, nesse tempo pós-pandemia?
O que conservar e o que mudar?
Qual é o papel da escola hoje?
Que escola ocupará o espaço daquela que estava aqui?

Referências

BARROS, V. M. de. Alteridade: autonomia ou ontonomia? In: FRIANÇA, A. et al (Orgs.). Educação e transdiciplinaridade III. São Paulo: TRIOM, 2005. p. 107-172.
FREIRE, P. Pedagogia dos sonhos possíveis. Ana Maria Freire (Org.) São Paulo: Editora UNESP, 2001.
GUATTARI, F. Caosmose: um novo paradigma estético. Tradução: Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. Rio de Janeiro: 34, 1992.
MATURANA, H. R. Conversações matrísticas e patriarcais. In: MATURANA, H. R.; VERDEN-ZÖLLER, G. Amar e brincar: fundamentos esquecidos do humano do patriarcado à democracia. Tradução: Humberto Mariotti e Lia Diskin. São Paulo: Palas Athena, 2004. p. 29-115.
MATURANA, H. Transdiciplinaridade e cognição. In: NICOLESCU, M. et. al. Educação e transdisciplinaridade. Tradução: Judite Vero, Maria F. de Mello e Américo Sommerman. Brasília: UNESCO, 2000. p. 83-114.
MORIN, E. Problemas de uma epistemologia complexa. In: _____. et al. O problema epistemológico da complexidade. Lisboa: Europa-América, 1996. p. 13-34.
NICOLESCU, B. Um novo tipo de conhecimento – transdisciplinaridade. In: NICOLESCU, M. et. al. Educação e transdisciplinaridade. Tradução: Judite Vero, Maria F. de Mello e Américo Sommerman. Brasília: UNESCO, 2000. p. 13-29.
PAÍN, S. Diagnóstico e tratamento dos problemas de aprendizagem. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985.
SERAFINI, A. Z. et. al. O ambiente educativo: é possível torná-lo extraordinário? In: PORTILHO, E. M. L. (Org.) Formação continuada na educação infantil: outros olhares sobre as crianças e as infâncias. Curitiba: Appris, 2015. p. 113-127.
TROCMÉ-FABRE, H. Reinventar: o ofício de aprender, o único ofício sustentável atualmente. São Paulo: Triom, 2010.
TROCMÉ-FABRE, H. A árvore do saber-aprender: rumo a um referencial cognitivo. São Paulo: Triom, 2004.
VISCA, J. Clínica psicopedagógica: a Epistemologia Convergente. 2. ed. Tradução: Laura Monte Serrat Barbosa. São José dos Campos: Pulso, 2010.
VISCA, J. Mosaico psicopedagógico. Textos e reflexões. Organização: Raquel Kielmanowicz e Laura Monte Serrat Barbosa. Tradução: Laura Monte Serrat Barbosa. São José dos Campos: Pulso, 2015.

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