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A família no processo de avaliação da aprendizagem

11 de junho de 2021

Este texto, de autoria da psicóloga Vera Lucia Germano Sicuro (CRP 08/0222) faz parte do livro “Avaliar para nós é…”, publicado pela editora Melo em 2011:

Quando, em 1988, criamos a Síntese, éramos psicólogas e psicopedagogas com diferentes histórias de ligação com o processo da aprendizagem, porém, todas inquietas e preocupadas com o estereótipo depositado pelos responsáveis nas crianças que apresentavam dificuldades na aprendizagem.
Tínhamos, por vezes, a impressão que os pais nos entregavam seus filhos para a avaliação do seu processo de aprender esperando uma mudança “mágica”, e que muitas vezes era difícil para estas crianças permanecerem no processo corretor, pois algo que não conseguíamos bem identificar acontecia e fazia com que o processo fosse “abortado”. Percebíamos, em muitos casos, o desejo dos pais em colaborar para uma mudança no padrão de aprendizagem de seus filhos, mas, na medida em que se efetivava por parte da criança uma demanda diferente em relação à conduta dos pais, estes pareciam se sentir “ameaçados” e interrompiam o processo. Ficava, para nós, cada vez mais claro que o funcionamento da família interferia significativamente no processo de manutenção do sintoma apresentado pela criança em relação à sua aprendizagem, seja facilitando, dificultando e algumas vezes até impossibilitando o processo terapêutico.
Percebíamos que muitas vezes, a criança, nosso cliente:
– assumia responsabilidades que não eram suas;
– vivia uma história que pareia não ser sua;
– buscava uma competência muito além ou muito aquém do que era capaz;
– parecia proteger outros elementos do grupo familiar com sua conduta considerada inadequada;
– se permitia ser usado como “bode expiatório” na escola.
A equipe se questionava! As psicólogas, terapeutas familiares com formação sistêmica, acreditavam que o sintoma apresentado por um membro, dentro de um sistema familiar, não dizia respeito apenas ao portador da queixa de dificuldade para aprender, era representativo do funcionamento familiar, de seu padrão de relação. E começaram a se perguntar se havia alguma relação entre a forma de aprender da criança e o padrão de aprendizagem de sua família. As psicopedagogas não tinham esta mesma formação sistêmica, mas seu olhar era em uma direção muito parecida! A equipe (psicólogas e psicopedagogas) começou então a questionar se havia alguma relação entre o jeito da criança, nossa cliente, aprender e o de sua família. E se havia relação, que influência tinha na criação e na manutenção da dificuldade que a criança apresentava? Será que esta compreensão, se verdadeira, podia ajudar na superação da dificuldade da criança? Como poderíamos avaliar isso? Eram muitas perguntas…
Em teoria, sabíamos que é dentro do seio familiar que a criança começa suas primeiras aprendizagens sobre quem é; o que pode ou deve fazer ou mesmo sentir em determinadas situações; como lidar com a novidade, o desafio, o sucesso, a frustração; as suas potencialidades e os seus limites, entre outros ensinamentos (intencionais ou não).
Não pretendíamos, de forma nenhuma, ao dar um enfoque sistêmico ao processo diagnóstico das dificuldades de aprendizagem, colocar o foco na família em detrimento do indivíduo, pois isso seria incorrer no mesmo erro da visão linear, acreditando na existência de uma causa única para as dificuldades de aprendizagem. Nossa crença, dentro de uma visão sistêmica e interacionista é de uma investigação multicausal, buscando aspectos relacionados ao elemento portador do sintoma, aqueles ligados aos contextos onde a dificuldade de aprendizagem se manifesta, assim como aqueles que dizem respeito às relações entre o aprendente e o ensinante.
Uma das características básicas da visão sistêmica é o movimento de ampliar e focar, isto é, ver o indivíduo ora como um sistema, um ser único com peculiaridades, ora como um subsistema ou parte de sistemas maiores, como a família que lhe deu origem e o meio social e escolar em que vive e convive. Consideramos então que a família é variável interveniente na identificação, compreensão, prognóstico e tratamento das dificuldades de aprendizagem e, como tal, um olhar para ela poderia complementar a avaliação da forma como já era feita. Em função deste contexto, mudamos a forma como nos referíamos ao cliente foco principal de nossa avaliação. Antes o chamávamos de paciente ou paciente identificado e passamos a designá-lo como Elemento Portador do Sintoma (EPS).
As psicólogas integrantes da equipe da Síntese sabiam como fazer sessões de avaliação familiar quando havia queixas de dificuldades de vinculação e de comunicação, entretanto, neste momento, era preciso conceber uma situação onde se pudesse avaliar também o padrão de aprendizagem. Era necessário unir a visão da terapia familiar sistêmica com a da epistemologia convergente (que fundamentava a ação das psicopedagogas).
Imaginamos, então, que esta avaliação do padrão de aprendizagem familiar poderia ser feita em uma sessão onde pudéssemos reunir todos os membros do grupo familiar e observar como reagem a uma situação onde haja a necessidade de uma aprendizagem grupal. Precisava ser vivencial, para que a família, de forma não consciente, demonstrasse seu padrão. A coordenação do encontro ficaria a cargo da psicóloga, que também observaria o padrão de funcionamento familiar, mas contaria com a participação de uma psicopedagoga que focaria sua observação no EPS, em como ele age e reage dentro deste sistema.
Precisávamos dar um nome a este momento. As psicopedagogas, que tinham formação fundamentada na Epistemologia Convergente, lidavam com o conceito de operatividade, que tinha a ver com a ação do aprendiz sobre o objeto a ser aprendido. Então escolhemos chamá-lo de Entrevista Operativa Familiar (EOFa).
Ao determinar o que seria privilegiado na observação deste sistema familiar, elencamos:
– as crenças e os valores e os mitos desta família;
– as expectativas quanto ao desempenho do EPS e dos demais membros em relação à aprendizagem formal e informal;
– a sua forma de organização hierárquica;
– o seu padrão de comunicação familiar e as fronteiras emocionais entre os membros;
– o papel do sintoma, apresentado como queixa para este sistema, na primeira consulta;
– o ritmo do EPS, na compreensão, ação, reflexão e comunicação, em relação ao ritmo dos outros membros da sua família;
– o papel do elemento portador do sistema (EPS) neste sistema familiar;
– o espaço existente para o não saber;
– o padrão de escolha;
– o espaço existente para o processo de reflexão;
– as alianças, os conflitos e exclusões que ocorrem entre seus membros;
– o processo de disciplina existente;
– a crise vital em que se encontra este grupo familiar;
– a demanda social – as famílias de origem, o contexto social atual, a escola.
A equipe da Síntese, na construção da EOFa, determinou que a mesma tivesse uma duração de 90 minutos, aproximadamente, e fosse constituída de três momentos: apresentação, construção e reflexão.
A tarefa do primeiro momento, da apresentação, é cada um dos membros que compõem o sistema familiar em questão falar de si a partir de algumas perguntas usadas como disparador.
O segundo, da construção, é quando a família trabalha a partir de uma consigna que a estimule a cumprir uma tarefa conjunta. Às terapeutas que participam deste encontro compete, em silêncio, observar e fazer anotações sobre os aspectos que dizem respeito ao funcionamento familiar na realização da tarefa proposta. Como a EOFa é um momento extremamente complexo e rico em detalhes, percebemos que muitas vezes fazer anotações apenas era pouco. Passamos então a gravá-la em fitas de VHS para depois analisá-la e fazer registros mais detalhados. Hoje, acompanhando a evolução da tecnologia, é o computador que nos auxilia nesta tarefa. No início, ao pedirmos permissão às famílias para realizar a filmagem da sessão, recebíamos muitas negativas, mas hoje este procedimento se tornou rotina e apenas comunicamos a utilização de tal recurso.
No momento da reflexão é pedida à família uma descrição da sua produção e do processo utilizado para o cumprimento da tarefa proposta. Em seguida, são estabelecidas analogias da forma de ação e interação na realização desta tarefa com outros momentos/tarefas na vida deste grupo familiar.
Restava ainda definir quem seriam os membros do grupo familiar a serem convidados para participar da EOFa. A princípio pensamos nas pessoas que moravam na mesma casa que o EPS, mas logo percebemos que em algumas famílias os avós, a madrinha, a babá ou a nova família de uma das figuras parentais, entre outras, tinham papel relevante naquele caso e deveriam ser convidadas também. Por vezes é necessário fazer mais de uma EOFa, pois não é interessante ou conveniente misturar os subsistemas a que a criança pertence, como no caso de pais separados e com guarda compartilhada, pois em cada casa mudam as regras e as formas de vivenciar as ligações afetivas.
Com estes aspectos definidos, nos questionamos sobre o momento do processo de avaliação em que deveríamos inserir a EOFa. Como não tínhamos ainda uma premissa sobre isto, experimentamos de diversas formas, mas chegamos à conclusão de que o melhor momento é logo no início, após a primeira consulta, antes ou logo após a Entrevista Operativa Centrada na Aprendizagem (EOCA).
Nas primeiras vezes em que utilizamos a EOFa no processo de avaliação das dificuldades de aprendizagem, levantávamos as hipóteses a partir dela e precisávamos de muitas sessões para confirmá-las. Com o passar do tempo e a apuração do nosso olhar, fomos obtendo uma segurança maior acerca de nossas percepções, e a EOFa se mostrou um recurso de avaliação extremamente rico, nos permitindo levantar inúmeros aspectos no primeiro sistema de hipóteses e com isso planejar melhor a continuação do processo avaliativo.
Fazemos questão que a psicóloga saiba o mínimo possível sobre o caso em questão antes de participar da EOFa para que possa entrar “descontaminada” das hipóteses levantadas pela psicopedagoga que ouviu, na primeira consulta, a queixa do ponto de vista dos pais. Percebemos que esta estratégia lhe permite perceber melhor os aspectos, já descritos acima, ocorridos no decorrer da EOFa.
Voltando a falar do período de “criação” da EOFa, é importante dizer que durante dois anos, testamos, desenvolvemos e sistematizamos a técnica utilizando-a em 72 casos de avaliação de crianças que apresentavam dificuldades na aprendizagem formal. Criamos então a nossa metodologia para avaliar sujeitos com dificuldades de aprendizagem e a batizamos: “Processo Diagnóstico da Dificuldade de Aprendizagem num Enfoque Sistêmico”. Sua apresentação formal ao meio científico aconteceu no congresso: “1ªs Jornadas de La Fundación para Asistencia, Docencia e Investigación Psicopedagógica” e a 3ª Jornada Del Centro de Estúdios Psicopedagógicos” Propuestas Psicopedagógicas para E1 2.000 – Buenos Aires – Argentina, em 1991.
Desde então, além de já tê-la utilizado, até o momento em que escrevo este texto, 1.161 vezes temos supervisionado muitos outros profissionais que também passaram a utilizá-la.
Outro aspecto que constatamos ao longo do tempo, é que a EOFa, como proposição de uma situação inusitada de aprendizagem familiar, além de nos permitir conhecer os aspectos necessários à avaliação do EPS, se torna também um momento lúdico para a família, muitas vezes de resgate de aspectos perdidos na convivência do dia a dia, ou ainda, uma aprendizagem que pode ser levada para fora dos limites da Síntese (e muitas vezes é).
Outro recurso criado na ocasião, por nossa equipe, para complementar os dados levantados durante a EOFa e utilizado ainda hoje é o “Questionário Trigeracional”. Ele é entregue a cada um dos participantes da EOFa que saibam escrever e tenham compreensão para preenchê-lo, obviamente, e às vezes enviado a algum membro ausente, porém identificado como informante relevante na compreensão da dinâmica do caso em questão. Este questionário deve ser respondido em casa e entregue depois para que após ser lido e analisado, a equipe possa levantar questões a serem aprofundadas no decorrer da Entrevista Histórica.
Este instrumento pesquisa:
* sobre a pessoa que responde ao questionário:
– dados de identificação;
– dados da sua família origem;
– dados sobre a sua família atual;
– dados sobre seu cônjuge e seu casamento atual;
– dados sobre seus casamentos anteriores, se for o caso;
* sobre motivo da procura:
– informações referentes à compreensão que esta pessoa tem em relação aos dados da procura desta avaliação;
* sobre as rotinas:
– pessoais e familiares;
* sobre outros dados pessoais, da família atual e da família de origem:
– doenças;
– mortes;
– vícios;
– segredos;
* um espaço livre:
– para informações que lhe pareçam pertinentes ou importantes.
Ao terminar esta exposição, permeada por recordação de mais de vinte anos de trabalho em equipe, cito o poema de Madalena Freire:
Eu não sou você e você não é eu
Eu não sou você
Você não é eu
Mas sei muito de mim
Vivendo com você
E você, sabe muito de você vivendo comigo?
Eu não sou você
Você não é eu
Mas encontrei comigo e me vi
Enquanto olhava para você
Na sua, minha, insegurança
Na sua, minha, desconfiança
Na sua, minha, competição
Na sua, minha, birra infantil
Na sua, minha, omissão
Na sua, minha, firmeza
Na sua, minha, impaciência
Na sua, minha, prepotência
Na sua, minha fragilidade doce
Na sua, minha, mudez aterrorizada
E você se encontrou e se viu, enquanto olhava pra mim?
Eu não sou você
Você não é eu
Mas foi vivendo minha solidão que conversei
Com você, e você conversou comigo na sua solidão
Ou fugiu dela, de mim e de você?
Eu não sou você
Você não é eu
Mas sou mais eu, quando consigo
Lhe ver, porque você me reflete
No que eu ainda sou
No que já sou e
No que quero vir a ser…
Eu não sou você
Você não é eu
Mas somos um grupo, enquanto
Somos capazes de, diferenciadamente,
Eu ser eu, vivendo com você e
Você ser você, vivendo comigo

E, proponho uma reflexão a nós profissionais da educação:

– de que forma este poema me toca?

– o que ele tem a ver com a minha fusão ou diferenciação em relação ao processo de aprendizagem do outro, meu aluno, filho ou cliente?

– o quanto de mim eu projeto no meu aluno/filho/ cliente, de forma a não conseguir enxergá-lo tal qual realmente está?

– o quanto eu me permito conhecer a partir do meu aluno/filho/cliente?

Referências:

Freire, Madalena. O que é Grupo. In: Ester Grossi (org). A Paixão de Aprender. Petrópolis, RJ, Ed. Vozes, 2009.

Carter, Betty; MCGoldrick, Mônica; trad. Veronese, Maria Adriano Veríssimo. 2ª ed. 2ª reimpressão. As Mudanças no Ciclo de Vida Familiar: uma estrutura para a terapia familiar. Porto Alegre, RS, Artmed, 2001.

Vasconcellos, Maria José Esteves de. Pensamento Sistêmico – O novo Paradigma da Ciência. Campinas, SP, Papirus, 2002.

Nichols, Michael P.; Schwartz, Richard C.; trad. Lopes, Magda Frença. 3ª ed. Terapia Familiar: conceitos e métodos. Porto Alegre, RS, Artmed, 1998.

Minuchin, Salvador; trad. Cunha, Jurema Alcides. Famílias: funcionamento e tratamento. Porto Alegre, RS, Artes Médicas, 1982.

Krom, Marilene. Família e Mitos – prevenção e terapia: resgatando histórias. São Paulo, SP, Summus, 2000.

Souza, Anna Maria Nunes de. 3ª ed. A Família e seu Espaço – uma proposta de terapia familiar. Rio de Janeiro, RJ, AGIR, 1997.

Equipe “Síntese – Psicologia e Pedagogia” Processo Diagnóstico da Dificuldade de Aprendizagem num Enfoque Sistêmico. In: Revista Psicopedagogia, publicação da Associação Brasileira de Psicopedagogia, nº 22 p. 33 a 39, 1991.

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